11 de Abril de 2019. Eu, um Irlandês e mais um Inglês soltamos as amarras do cais rumo a uma viagem dos sonhos da Irlanda até o Mediterrâneo. Com sede de aventura, com um bom estoque de álcool, com a confiança de piratas que já velejaram os 7 mares, com a experiência de menos de mil milhas náuticas somados todos juntos, de lá saímos numa expedição através do mar Irlandês: os garotos perdidos da Terra do Nunca.
O barco estava completamente equipado (no quesito segurança) e melhorado (mas não ainda auto-suficiente) ao ponto o qual eu consideraria seguro e confortável aquela altura. Foi cedo que descobri que um tanque de 200 L de água acaba bem rápido com 3 pessoas abordo e que o gerador eólico xing ling era um barulhento e imprestável ventilador de merda.
Primeira Parada: Caernarfon – País de Gales
Motor ligado, linhas soltas e rádio verificado antes de pegar o mar.
Uma travessia semi fácil de 12h com alguns ventos de frente nos forçando a um rumo ligeiramente mais norte que esperávamos. Bom pra testar a resistência da tripulção e a nossa habilidade de considerar outros portos alternativos. O vento acabou morrendo no final das contas e apenas motorizamos rumo ao que foi planejado inicialmente. Já era quase noite quando chegamos na entrada do Estreito de Menai. A maré estava baixa e tentamos a sorte em não seguir à risca a orientação da carta náutica: “bancos de areia que se móvem, o canal não deve ser usado em nenhum momento que não em maré cheia em mar calmo”. Como o mar estava calmo, o máximo que poderia acontecer seria encalhar em 1m e meio de areia e ter que esperar uma horinha no máximo antes de poder seguir a meia hora que faltava pra chegar na ancoragem. Bom, 1.9m foi o máximo que o sensor de profundidade aferiu. Mais que o suficente pra chegar no primeiro farol, virar a bombordo (esquerda), descer a âncora e tomar umas geladas pra comemorar a travessia.
Próxima Parada: Porthdinllaen – País de Gales
Após uma visita rápida ao castelo em Caernarfon, saímos em direção a praia de Porthdinllaen, onde ficariamos ‘presos’, inicialmente na esperança de que o bar Tý Coch Inn tivesse a festa que estava programada, e depois por conta do tempo ruim nos próximos dias. Tempo de sobra pra jogar uns jogos de mesa, beber e tomar nosso primeiro banho de mar gelado. O banho rápido de mar é uma das principais formas de se economizar água a bordo. Você basicamente pula na água rapidinho só pra se molhar e sobe de volta. Se lava com sabão e pula de volta pra tirar o sabão. Pra finalizar é só tirar o sal com água fresca. Taí um banho rápido com 1 litro ou menos de água fresca.
Estava tudo muito bem, até que não mais…
Em uma das noite ancorado não tão bem protegido, com ventos fortes e o barco pendulando na corrente, um dos tripulantes que não nomearei aqui no blog, bebeu demais. Era uma segunda-feira por volta de 10 da noite. Eu estava na minha cabine pronto pra dormir, o Irlandês, Jordan (gente boa pra caramba por sinal) estava do lado de fora no telefone e aquele-que-eu-não-vou-dar-nome levanta da outra cabine batendo pelas paredes mal conseguindo ficar de pé. Visivelmente bêbado, o sujeito sobe ao convés. Adivinha pra quê? Pra mijar no mar. Um gênio. Naquelas condições, se não fosse pelo Jordan e por mim correndo da minha cabine ele estaria ao mar. De noite. Bêbado. Com rajadas de mais de 25 nós. Barco pendulando de um lado ao outro. Água a 13°C. Não dormi aquela noite enquanto meu cérebro digeria a situação: Primeira semana e um dos tripulantes é metade ajudante e metade pior que inútil, um risco! Meu outro tripulante, é bem mais esperto e 150% confiável. Melhor velejador que eu inclusive em alguns momentos. Havia um equilíbrio. Mas ainda assim eu me sentia muito desconfortável com o outro tripulante que, acredite ou não, apresentava outros problemas includindo mal cheiro.
Conversamos na manhã seguinte e as coisas voltaram ao ‘normal’.
Próxima Parada: Pwllheli – País de Gales
Travessia fácil de 40 milhas náuticas e velocidade máxima de 11 nós na ilha de Bardsey sendo uns 6 nós só de corrente. Nem acreditei quando vi no GPS. Logo a frente no navegador havia a Laje do Diabo (Devil´s Ridge) que parecia preocupante mas a condição do mar estava tranquila e passamos com facilidade cambando em orça fechada (zig zag).
Entrar na marina de Pwllheli foi moleza na maré certa. Mesmo esquecendo a vela principal competamente içada. Oops. Como não existia vento praticamente, recolhemos sem dificuldade.
O vilarejo de Pwllheli não era lá grandes coisas pra ser sincero. Fizemos compras e na volta do mercado o Jordan se aproximou de forma meio suspeita pra perguntar a uma mulher na rua como se pronunciava Pwllheli kkkkk. Ela olhou meu assustada tipo: “o que é que esses garotos querem?” e respondeu: “púl-rréli” enquanto puxava o filho pra perto. Taí como se fala, Pwllheli. Nome peculiar gaulês que significa piscina de água salgada.
De volta a marina, tomamos o nosso primeiro banho de verdade desde que iniciamos a viagem e no dia seguinte cedinho compramos umas peças pro barco na loja náutica.
E por uma coincidência daquelas, meu instrutor da vela da Irlanda faria uma entrega de uma barco de Pwllheli até Fishguard no dia seguinte! Ele achou nosso barco na marina e veio dar uma alô. Se a loja náutica abrisse um pouco mais cedo daria pra apostar uma corrida até Fishguard! kkkk como se tivéssemos chance contra um profissional num barco novinho de 40 pés.
Next Stop: Fishguard – Wales
A travessia até Fishguard foi maravilhosa. Golfinhos seguiram o barco pela primeira vez e a gente se divertiu pendurado na retranca a favor do vento.
Já era noite praticamente quando chegamos na ancoragem. Conseguimos achar o barco que meu instrutor estava e ancoramos por perto pra dar um alô.
Antes de dormir, percebemos que a luz de ancoragem não estava acendendo e precisariamos escalar o mastro pra consertar. Tivemos que subir no mastro por diversas vezes nas semanas seguintes por sinal. Ainda bem que eu tinha o equipamento! Grande agradecimento ao Sérgio do SV Glue Trip que me ensinou os paranauês de escalar o mastro com a técnica do nó Prusik na Irlanda. O Jordan também manjava de escalar e ajudou bastante subindo algumas vezes.
Parada rápida para falar de problemas…
Eles acontecem a todo momento! Leia de novo lentamente: TODA HORA! Primeiro foi a luz de ancoragem, depois a adriça da genoa e o sistema de enrolar a vela (voltarei a isso mais tarde) e finalmente o anemômetro que parou de rodar. Esse último sozinho foi uma batalha pro si só e tivemos que subir diversas vezes até criar coragem de fazer o trabalho certo que envolvia abrir e limpar o rolamento com WD. Consegui quebrar a peça durante o processo e um durepox resolveu bonito. Funciona perfeito até hoje!
E isso era só no topo do mastro. Próxima parada, vazamento nos canos.
Bote fora do baú, enchido, e remamos até a beira da água. Foi uma luta pra achar um lugar onde deixar o bote devido a maré que ainda estava esvaziando. Na volta foi ainda pior na maré baixa. Tivemos que arrastar o bote por uns 300 metros pra chegar na água de novo.
Fishguard era um vilarejo bem bonitinho. Especialmente a parte baixa.
No meio tempo, depois de uns amigos e da familia compartilhando a expedição, fui contactado por um jornal na Itália chamado Il Telegrafo Livorno. Eles fizeram algumas perguntas e pediram algumas fotos e um dia depois tava lá. Publicaram uma foto enorme da minha cara estampada na capa do jornal! Fiquei rindo a toa por uma semana sem acreditar. O sonho estava mais real do que nunca.
Próxima Parada: Ilha de Skomer – País de Gales
Terminados de visitar Fishguard, decidimos fazer nossa primeira travessia a noite até a Ilha de Skomer. Um santuário de aves que abriga o famoso Puffin bird.
A noite era linda de lua cheia, céu estrelado e vento fraco. Deu pra sentir o cheiro de bosta de passarinho a milhas de distância da ilha. Por volta de 01:00 da manhã ancoramos na baía sul. E que sensação boa acordar com o som dos pássaros e um visual desses…
Velejamos para o outro lado da ilha no dia sequinte na esperança de entrar na ilha. De lá passamos um rádio e fomos informados que a taxa de entrada só poderia ser paga em dinheiro. Como nós só tinhamos grana no cartão, tivemos que ir embora. – problemas do primeiro mundo #carinhatriste
Preocupados com o tempo, decidimos pular Milf Heaven Milford Haven para chegarmos a Cardiff e Bristol mais rápido. Optamos pela Ilha Caldey no meio de caminho. Descemos a âncora, demos uma ré pra âncora morder e bang! Um estrondo do motor antes de morrer. Demos ré na linha de pesca. Oops. Felizmente tínhamos roupa de borracha, máscara de mergulho, uma boa faca e um Irlandês extremamente motivado a entrar na água e salvar o dia.
Próxima Parada: Cardiff – O Canal de Bristol
O Canal de Bristol foi uma grande surpresa. Ele ostenta a segunda maior variação de maré do mundo com 12 a 14 metros de variação! (a maior fica na Baía de Fundy no Canadá com 16 metros de variação). Consegue imaginar uma piscina de 14 metros de profundidade vazia? Agora imagine um canal inteiro ciclando entre cheio e vazio a cada 6 horas. É impossível lutar contra uma correnteza dessas e tem-se que planejar bem a travessia. A água fica super turva e eu desisti da ideia de tomar um shot de água do mar pra comemorar minhas primeiras mil milhas náuticas. Rum escuro fez o serviço.
Chegamos de tardinha com maré alta em Cardiff e passamos um rádio pro controle da barragem. Eles então nos passaram a baia onde amarramos o barco dentro dos portões. Passada a barragem, ligamos pra marina que já estava reservada e nos passaram a vaga pra estacionar o barco.
A marina de Cardiff era bem bacana. Eles tem até um bar aberto perfeito pra uma cerveja assistindo o pôr do sol. A noitada na cidade de Cardiff por outro lado não agradou. Talvez tenha sido o dia ou a hora, não sei. Um monte de gente bêbada e estranha nas ruas. Os bares estavam meio vazios e tinham uma atmosfera pesada. Como se diz na irlanda: no craic! Fomos ligeiros em sair em direção a Bristol no dia seguinte.
BRISTOL! – Inglaterra
Bristol foi simplesmente sensacional e ocupa a posição de cidade preferida da viagem. Até pra chegar lá já é uma aventura por si só! Desde descer o Rio Avon na maré certa, passando pela famosa cidade de Portishead, debaixo da Avonmouth Bridge antes da icônica Victoriana Clifton Suspension Bridge até chegar na primeira barragem. Depois assitir a 2 pontes se abrirem tendo o trânsito interrompido pra que seu barco possa passar. E finalmente entrando na cidade, ao lado de um bar aberto e sendo recebido pela pessoas acenando em sinal de boas vindas. Você pode literalmente estacionar o barco na frente dos bares pra tomar umas. Dá pra ser mais épico?
A cidade é cheia de bares e restaurantes bacanas, do imperdível St Nicholas Market, uma excelente loja náutica: Force 4 e uma loja de ferramentas e materias de construção: Wickes onde eu pude comprar uma mangueira, fita de vedar cano e umas tiras de alumínio pra fazer um suporte mais robusto pro painel solar.
Também pude visitar um casal de amigos e buscar uma encomenda que eles receberam pra mim. Obrigado Tom e Júlia! A tia do Jordan também apareceu pra tomar um chá e nos deu uma garrafa de rum de presente. Obrigado Judith! Direto pra parede de boas memórias!
Uma tempestade estava previsa pros próximos dias e tivemos que esperar quase uma semana antes de poder sair da cidade. Tempo de sobra pra andar a esmo e fazer nada! Pequena nota em relação a condição dos banheiros que é oferecida aos visitantes: terrível!
Próxima Parada: Ilha de Lundy – Inglaterra
O plano pra sair do Canal de Bristol era dividir a travessia em duas pernadas até a ilha de Lundy pra não ter que lutar contra a correnteza. As opções eram limitadas e nós decidimos ancorar do lado de fora de Cardiff, na parte leste da ilha Flat Holm. Só parece ser possível durante maré morta e mesmo assim pega-se uma corrente de até 2 nós. Não muito aconselhável pra ser sincero mas ainda assim possível com tempo bom e mar calmo. A outra opção seria entrar em Cardiff de novo e pagar outro pernoite na marina. Ainda assim perderiamos um bom tempo.
A segunda pernada da travessia foi chuvosa e com ventos fracos. Decidimos voar a vela de balão pela primeira vez mas o vento estava muito fraco e fomos motorizando a maior parte do tempo. Foi então que no meio do canal ouvidmos um estrondo familiar e o motor morrer de novo. Nós tinhamos passado por cima de uma corda amarela a deriva que foi direto pra hélice. Levamos uns segundos até perceber que ela estava arrastando atras do barco. A água estava bastante gelada, logo iria escurecer e o mar estava meio ondulado naquela hora. Não tinha nenhum lugar pra ancorar por perto, não tinha vento e a correnteza iria eventualmente virar contra a gente. Era minha vez de colocar a roupa de borracha e salvar o dia. Cortei um pedaço da corda e pendurei na parede do barco de recordação.
Depois disso foi vida mansa motorizar até a ilha de Lundy onde descemos a âncora e passamos a noite. Lundy é uma das minha ilhas favoritas da viagem. Ela funciona como uma grande fazendo e reserva de pesquisa biológica e tem um visual daqueles. Cheia de pássaros, ovelhas, cabras, pôneis, gado das terras altas e muitos outros animais.
Ficamos lá somente por um dia e zarpamos em direção ao Porto de Isaac. Foi nossa primeira tentativa de velejar sem utilizar o motor mesmo com ventos fracos mesmo que levasse a noite inteira. Foi bem entendiante navegar a 2 nós. O vento então aumentou e virou em nossa direção e tivemos que desviar para a baía do porto de Quinn onde dava pra acorar com segurança. Não dava pra ver absolutamente nada e estavmos nos baseando completamente pelo GPS. Depois de quase passar por cima de uma bóias de pesca, chegamos com segurança na baía e descemos a âncora numa profundidade de uns 5 metros.
Próxima Parada: Padstow – Inglaterra
Sabiamos que ventos fortes viriam nos próximos dias e o Rio Camel era nosso melhor abrigo. A não ser por alguns detalhes. A maré secava a maior parte do rio e a única parte ancorável em frente a Padstow era cheio de poitas. Nenhuma delas disponível para visitantes. A marina era uma outra opção mas estávamos com o orçamento apertado tentando economizar dinheiro e preferíamos gastar em cerveja. Achamos um lugar entre as poitas e descemos a âncora. Para a nossa surpresa, fomos cobrados para ancorar! O metre do porto veio até nós, gente boa pra caramba por sinal, e depois de uma longa explicação sobre história e propriedade da baía, fomos cobrados uma simbólica taxa de 40 libras para passar uma semana. Ainda assim bem mais barato que a marina que sairia facilmente por uns 35 libras a diária!
Padstow foi o maior exemplo dos “altos e baixos de se velejar”. Os Altos geramente parecem os melhores dias das nossas vidas e os Baixos, dias que gostariamos que nunca tivessem acontecido.
Chegamos na cidade no dia primeiro de Maio, por coincidência, o melhor dia do ano pra se estar lá graças ao Festival Dia de Maio ‘Obby ‘Oss. Um festival de folclore local onde todo mundo se vestia com roupas brancas de marinheiro e um lenço Azul ou Vermelho em referència ao Oss (uma espécie de boi). O Vermelho conhecido com Oss Antigo e o Azul também conhecido como Oss da Paz. As ruas cheias de gente dançando, tocando sanfona, tambor, cantando junto e tomando cerveja. Ocasião perfeita pra ir de bar em bar. Nos divertimos o dia inteiro! O clima também estava ótimo. Sol e calor. Um raro gosto de verão por essas latitudes e época do ano.
Motivados pelo tempo ruim que estava por vir e a minha decisão de esperar por lá onde estávamos protegidos, tivemos uma conversa de bêbado sobre zona de conforto e em que condições deveriamos velejar. Eles estavam ansiosos para sair em ventos fortes, o que no meu dicionário significa mais de 22 nós. e eu os comparei a soldados recrutas ansiosos pra ver bala voando na guerra. Eles queriam brigar com o mar. Na minha cabeça aquilo não fazia sentido nenhum. Como é que alguém pode gostar de vento frio, rajada de água salgada que parece cortar o rosto, barco batendo nas ondas, ouvindo aquele monte de barulho que soa como “isso não está certo”, pelo menos não na minha cabeça, lutar contra um leme mais pesado, barco inclinando até o deck e tudo caindo e quebrando lá dentro, se sentindo enjoado e aumentando a chance de ter que resolver problemas que você nem sabia que poderiam ancontecer en primeiro lugar só que agora em condições muito mais difíceis? EU NÃO!
Eu entendo que eles queriam ver como era com os próprios olhos, afinal como é que eles iriam responder aquela pergunta clássica de quem nunca velejou: “Já pegou alguma tempestade?” Mas eu era um velejador iniciante num cruseiro dos sonhos, carregando um pesado chapéu de capitão chamado responsabilidade e um coração de turista. Não me julgue, eu já estive em um tempestade com ondas de mais de 4 metros quebrando no barco durante meu curso de capitão. Também em ventos fortes sozinho até a Ilha de Man com um piloto automático quebrado. E depois de seis meses vejelando praticamente todo dia, acredite, eu já passei por isso, várias vezes! Não é agradável muito menos divertido. É sadismo dizer que gosta. Um vez ouvi uma piada de um homem que gostava de usar os sapatos 2 números menores que ele calçava só pra poder sentir o prazer de tirar o sapato depois de um longo dia de trabalho… Eu gosto de sol, brisa leve, novos lugares, pòr do sol, peixe fresco e cerveja gelada!
Piadas a parte, velejar é uma arte e existe todo tipo de velejador em cada porto. Saiba qual você é!
De volta ao nosso bote atolado na lama e com uma platéia olhando torcendo terem um motivo pra rir, demos um jeito de puxá-lo até a água e motorizar de volta pro barco.
Estava tudo muito bem, até que não mais… DE NOVO!
Uma noite ou duas depois, 02:00 da madrugada e eu ouço um estrondo! Alguma coisa bateu na gente, pensei (ou a gente bateu em alguma coisa). Acordei, abri a escotilha do meu quarto na proa e olhei em volta. Tinha essa luz verde e vermelha e alguém andando na parte de trás. Deu pra perceber que ainda estávamos ancorados. Achei que era um dos rapazes que ouviram o barulho e sairam pra ver o que era. Daí olhei pra dentro e vi que o Jordan ainda estava abrindo a entrada principal. Levei provavelmente um minuto inteiro, enquanto saía pro deck pela escotilha, pra perceber que tinha outro barco colado ao lado do meu e a pessoa que estava andando era o capitão no outro barco que bateu na gente e ficou preso numa das ferragens do meu barco. Ainda dormindo em pé e confuso eu perguntei a ele: “Vocè que arrastou âncora ou foi a gente?” Ele só respondeu que não sabia. Analizamos a situação que era: Ele estava sozinho e foi carregado pelo vento e pela corrente, bateu na gente e ficou agarrado.
O que realmente acontecer aquela noite? Até hoje eu não sei. Eu e o Jordan ajudamos a livrar o barco dele do nosso e ele foi carregado pelo vento e correnteza rio abaixo. Nem pediu desculpas. Tudo que eu sei é o nome do barco era “Just For Now” porque AlS do barco dele estava ativo naquela hora. Também por conta de uma pequena marca de tinta amarela no meu barco, que batia com a de um casco de uma barco parado na marina do dia seguinte. Culpado!
De volta pra dentro do barco havia um Senhor Você-Sabe-Quem, vomitando no banheiro por ter bebido duas garrafas de vinho (e mais um pouco) sozinho e mal conseguindo falar.
Imagina meu cérebro fervendo num sentimento que não sei nem se tem nome. Aquele evento podia ter sido um desastre. O outro barco podia ter feito um buraco no meu casco, poderia ter nos arrastado junto com ele pra cima de outros barcos, ou entao encalhado e virado de lado e entrado água, principalmente por conta dos ventos fortes e correnteza, e lá estava ele, não apenas imprestável mas precisando de babá de novo.
Por sorte o problema foi facilmente resolvido e nada de grave realmente aconteceu, mas foi a última gota. O famigerado precisava ir embora.
Coloquei minha cabeça do lugar e escrevi todos os motivos que eu tinha pra mandar ele embora (tinha bastante) e tive um plano sensato pra próxima manhã: “Vamos para Falmouth nos próximos 10 dias onde deve ser mais fácil pra você encontrar outro barco e eu outro tripulante”.
Se você me conhecesse pessoalmente, saberia o quão difícil foi aquilo pra mmim. Procuro ser o mais diplomático e sensato o possível e sempre tento evitar conflito. Mas aquele era o meu sonho e pra mim não estava dando certo.
Imagina a atmosfera no barco pelos próximos dias.
O Irlandês ajudou muito tentando melhorar o clima a bordo mas só chegamos no fundo do poço daquele “Baixo” mais tarde naquele dia. Tivemos a ideia de ir pescar com uns equipamentos que compramos em Padstow e o plano foi por água abaixo literalmente. Cerca de 150 L ou precisamente tudo que tinha no tanque de água fresca. A culpa dessa vez era toda minha. Existia um pequeno vazamento na tubulação de água fresca que estava me infernizando e eu fiz um péssimo trabalho tentando consertar. A mangueira que instalei se soltou e a bomba de água que ficava ligada o tempo inteiro fez o resto do serviço nos deixando naquela situação. Tinhamos um casco cheio dágua pra secar e apenas umas garrafas extras de água sobrando. Voltamos para a ancoragem.
Aquele dia parecia ser 2020 sozinho. HÁ
Próxima Parada: Newquay – Inglaterra
Newquay era um porto que seca com a maré e a entrada foi bem complicada, não só por conta do vento forte e das ondas mas também por conta de dois grupos remando alucinadamente contra as ondas em dois botes. bem em frente a entrada do porto. Pra piorar a situação, um deles capotou e eles se espalharam boiando nos coletes salva vidas. Eu já estava ali esperando e lutando conta as ondas, esperando uma chance de poder entrar, e agora tinha que me preocupar também com um deles vindo pra baixo do barco! Depois de longos minutos mantendo distância e rodando em círculos, eles foram resgatados e abriu-se uma janela para entrar no cais. Essa foi uma daquelas situações de estresse alto onde as coisas podiam dar muito errado muito rápido. Um monte de gente olhando de cima do cais. Eu estava firmado no timão em base: “Deixa comigo!”. Com calma e de vagar, escolhendo o ângulo e tempo certo entre as ondas passei pela entrada estreita que oferecia muito pouca margem para erro e as coisas ficaram muito mais calmas lá dentro. Reajustamos os defensores para onde parecia mais protegido das ondas e paramos o barco na parede Leste do cais ao invés da parede Norte.
Enquanto arrumavamos as cordas do barco fomos cumprimentados pelos pescadores mais gente finas que já vi na vida e eles ficaram cheios de inveja quando dissemos que iriamos pras ilhas Scilly. “Ahhhh leva a gente!”. As pessoas era tão gente boas e o dia estava tão bonito que decidimos passar o resto do dia e ‘secar’ Neverland na parede do cais pela noite.
‘Secar’ o barco na parede é complicado (foto abaixo), principalmente quando o mar não está 100% calmo. Ainda havia umas pequenas ondas entrando no cais e eu tive que passar a noite inteira acordando de hora em hora pra ajustar as cordas e evitar que o barco batesse na parede danificando o estaiamento. Pra ‘secar’ o barco, amarra-se uma adriça em terra firme pra manter o barco levemente inclinado em direção a parede. Não muito para não danificar o estaiamento e não pouco para o barco nao virar para o outro lado, o que seria um desastre total. Eu gosto de adicionar uns galões de água na proa quando o fundo é inclinado para o barco sentar na quilha certinho e não empinar para trás. Tenha certeza que sua quilha aguenta o peso do barco!
É assim que o barco fica quando ‘seca’. Essa foto foi tirada ainda na Irlanda quando eu limpei e pintei o fundo entre as marés.
Próxima Parada: lhas Scilly – O Caribe Inglês
Nossa travessia até as Scillies foi definitivamente uma das mais agradáveis com tempo maravilhoso. Exceto quando a vela da frente despencou do nada feito uma árvore morta. Madeira! Rapidamente desligamos o motor e puxamos a vela pra cima do barco. A adriça tinha arrebentado devido a um problema no rotor do topo do mastro que estáva desgastando a corda da adriça. Simplesmente conectamos a outra adriça da frente, hasteamos a vela de volta e continuamos velejando. Percebe como a vida é mais fácil com tempo bom?
Terminamos de chegar a baía da ilha de St Mary, prendemos o barco a uma poita e fomos para terra firme!
Chegamos lá no dia Cinco de Mayo (beba um shot de tequila se você sabe que dia é esse), o último dia de um campeonato de remo e estavam todos se divertindo e cantando canções de marinheiros! Nós também obviamente de bar em bar. Como se diz na Irlanda: GREAT CRAIC!
Até no caminho de volta, quando tentávamos ligar o motor do bote, acabamos encontrando uns caras mais bêbados que a gente procurando o bote deles. Um deles, auto proclamado engenheiro marinho que não conseguia identificar uma mangueira de combustível solta do tanque, tentou ajudar sem sucesso. Acabei conseguindo eu mesmo depois de algumas tentativas. De qualquer forma, tive que convidar os caras pra tomar mais umas a bordo. De volta ao barco, enquanto subíamos a bordo, o Irlandês se apoiou na escada mal presa e caiu na água com a escada e tudo. Nosso primeiro homem ao mar! Ficamos rindo disso a noite inteira.
Com aquela ressaca clássica acordamos no dia seguinte com bacon, ovos mexidos e uma Guinness, por que não? Um dos rapazes dormiu no sofá da sala e voltou com a gente pra terra firme no dia seguinte e nunca mais foi visto hahaha. Não lembro nem o nome do sujeito mas lembro que ele era nativo da ilha. Gente fina!
Fomos dar um mergulho e pular das pedras e depois disso o tempo voltou a ficar horrível. Tempestade atrás de tempestade. Não deu nem pra aproveitar as outras ilhas. Mesmo protegidos ainda sim haviam umas ondas que não me deixaram dormir direito por dias. Eu estava decidido a dormir em uma marina na próxima parada: Penzance.
Próxima Parada: Penzance e Falmouth – Inglaterra – Final da Parte I
O Irlandês Jordan, também tinha planos de comprar o próprio barco com um amigo de Belfast – uma das razões pela qual ele quase não veio nessa trip. Então ele pegaria um avião pra Grécia saindo de Penzance. Quando deixamos as ilhas Scilly já estávamos em clima de despedida.
Chegamos na marina, amarramos as cordas, o Jordan fez suas malas, abraço apertado, boa sorte e até logo. “Um dia a gente se encontra em algum porto pelo mundo”.
Fui dar uma volta pela cidade e tomar uma cerveja, voltei e consegui ter uma noite de sono própriamente na marina.
Saí para Falmouth no dia seguinte com o-outro-tripulante que desembarcou logo em seguida pra nunca mais ser visto de novo. Sem abraço. ADIOS!
Então é isso. Fim de um longo e intenso capítulo. Uma experiência de vida em apenas 30 dias. Tanto aprendi. Tanto ainda tinha que passar pela frente… Os garotos perdidos da Terra do Nunca haviam debandado. Eu estava sozinho. Então eu fiz o que qualquer outro velejador faria. Carta náutica de volta na mesa, tenho o Canal da Mancha pela frente.
Próximo Post: França e Espanha – Biscaia
Você pode seguir o Jordan e suas aventuras aqui!